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Valter Mattos

Valter Mattos
Ouvindo...

domingo, 23 de junho de 2013

A Revolta da Tarifa

“uma luz no fim do túnel”

Quando uma força, potencialmente descomunal, é colocada em movimento e não sabemos aonde ela chegará, seu potencial pode transformar-se em destruição somente, sem nenhum proveito, obviamente, para aqueles que a deslocaram; a menos que esta seja a intenção. Imaginem um imenso caminhão estacionado no topo de uma ladeira, bem íngreme, e alguém puxa seu freio de mão deslocando-o ladeira abaixo. Se não tiver quem, em sua boleia, segure o volante, um desastre ou fatalidade possivelmente acontecerá quando este veículo tiver seu deslocamento interrompido.
Está na cara – pelo menos para mim – que falta organicidade. Sinto falta de um corpo orgânico (desculpem-me o pleonasmo) capaz, de fato, de dar rumo ao movimento; capaz de organizá-lo. É claro que um mínimo de coordenação instrumental, demandada contingencialmente, existiu e foi hábil para, rapidamente, colocar em prática aquilo que aos poucos foi se transformando em um mar de moços e moças a procura de alguma coisa que, talvez, as gerações passadas ainda não encontraram. Todavia, sinto que no caminhão em curso tem algumas pessoas que, na boleia, ainda não aprenderam a dirigir – não tiraram carteira ainda.
Obviamente que estou falando das manifestações que nos últimos dias, a partir de São Paulo e Rio de Janeiro, vêm abalando o nosso país. Trata-se de um movimento espontâneo e socialmente muito pertinente; no entanto, tudo que surge espontaneamente, também espontaneamente pode desaparecer.
Tenho dúvidas se saberão dar o segundo passo; ou seja, se suas lideranças (se é que existem) vão saber aproveitar a força dada pelas ruas para encaminhar uma agenda cujas pautas de fato possam conquistar o que pleiteiam (em verdade, a princípio, o que querem soa como objetivos difusos cujo foco está pulverizado). Para isso, querendo eles ou não, vão ter que se institucionalizar enquanto algum tipo de organismo da sociedade civil. Não sei se estão dispostos; haja vista isto ser muito chato para muitos desses jovens.
Não estou querendo com esta análise crítica – feita às pressas, é verdade, já que ainda não contamos com a sabedoria que só o tempo pode nos proporcionar – desqualificar o movimento; mas não posso deixar de apontar algumas coisas que considero importante. Por exemplo, rejeitam veementemente a política e o governo que temos; mas o que propõem para colocar no lugar? Vou repetir, não quero desqualificar a validade deste movimento; fazer isso seria concordar com tudo de errado que ele denuncia. As manifestações, além de espontâneas, são deveras legítimas. Entretanto, espontaneidade e legitimidade, mesmo sendo muito importantes, não bastam; é preciso mais.
Insistindo, organicidade e institucionalidade seriam, a meu ver, os expedientes apropriados não só para organizá-los, mas, principalmente, discipliná-los. E aí me desculpem se por acaso pareço ultrapassado, mas são exatamente os organismos políticos que eles rejeitam, os partidos, os sindicatos, as associações estudantis etc., os que detêm esses expedientes.
Há partidos e partidos. Não podemos colocá-los, todos, em um mesmo saco. Existem os partidos fisiológicos e os ideológicos; estes, em resumo, preocupados em defender ideias; e aqueles, no mínimo, zelosos em defender os interesses econômicos dos indivíduos que os compõem. Dentre os partidos ideológicos – simplificando muito (para resumir e não ficar extenso demais) – existem os de direita e os de esquerda, cada um trazendo propostas, evidentemente, diferentes. Sem querer também entrar em uma discussão de valores entre direita e esquerda, há de se concordar, e os liberais que me perdoem, que em geral foram os partidos de esquerda que no passado encabeçaram movimentos de massa, populares e reivindicatórios, como os que estão acontecendo hoje – e a História é testemunha.
Estou ciente de que dirão que este discurso é ultrapassado e que este modelo de política não atende mais aos anseios da maioria das pessoas; o que considerarei como sendo muito razoável. Sendo assim, sou obrigado a levantar uma questão: se tal modelo político está inadequado para os dias de hoje, qual modelo, então, o substituirá? Inclusive, o modelo de representação política que hoje é hegemônico, pelo menos no mundo ocidental, é o liberal, o da política representativa, calcado, formalmente, na existência do voto, parlamento e constituição, e que ideologicamente, em termos de origem, pertence ao campo da direita. [Questionável o que acabo de dizer. Se pensarmos, por exemplo, na participação jacobina – a esquerda radical da Revolução Francesa do final do século XVIII – na Assembleia criada pelos revolucionários franceses, poderemos dizer, outrossim, que a origem da democracia liberal, representativa e, portanto, indireta, também vem da esquerda. No entanto, além dos jacobinos lutarem politicamente nas ruas com os sans-culottes, numa perspectiva de democracia direta, no decorrer do século XIX em diante, foi a direita que passou a utilizar o modelo liberal de se fazer política de Estado; enquanto o socialismo, surgido com este nome exatamente no XIX e confiscando pra si o titulo de esquerda, começava a questionar este modelo liberal de se fazer política, propondo alternativas a ele.]    
Seria o caso, portanto, de questionarmos o modelo liberal de se organizar politicamente a sociedade? Ou, em uma postura que considero perigosamente niilista, questionaremos a própria política? A palavra “política” vem de pólis, que é “cidade” em grego. Na Grécia antiga, política nada mais era do que a prática dos cidadãos de decidirem diretamente sobre a organização de sua cidade; isto é, política era o cidadão, junto a seus vizinhos, organizando o lugar em que vive (em cidades como Esparta, por exemplo, esta política era oligárquica; enquanto que em outras, como Atenas, era democrática – podemos, ainda, levantar sérios questionamentos acerca do fato de quem podia exercer plenamente a cidadania nesta cidade era uma minoria; de qualquer maneira, o modelo ateniense é muito interessante historicamente). O que estes jovens estão querendo fazer é simplesmente isso: interferir diretamente na organização das cidades em que se manifestam, exigindo a eficiência dos serviços públicos das mesmas; ou seja, estão fazendo política – ainda que muitos deles abominem esta palavra tão desgastada.
Quanto aos partidos políticos, também muito rejeitados pelos manifestantes, temos que entendê-los, em se tratando do modelo liberal e excluindo os fisiológicos, como “agremiações” que comportam indivíduos e grupos que defendem interesses e ideias políticas em comum. Por sua vez, esses interesses, teoricamente, são ideologicamente preocupados com a coletividade e seu bem comum. Como o modelo político liberal trabalha com a perspectiva, dentre outras, da representatividade, basta escolhermos o partido em que as ideias melhor representam o que entendemos como sendo prioridade para a sociedade em que vivemos. Se estes jovens partirem para um segundo passo no avançar de seu movimento, passando a se organizar de fato, e criarem, por exemplo, algum tipo de organização minimamente formal para encabeçar negociações e ações junto às autoridades de Estado, estarão constituindo um “partido político” sem que este, necessariamente, tenha como inicial a letra “P” – irônico isso, não acham?
Concordo que há uma densa corrosão nas relações, mediadas pela política e seus partidos, entre o Estado e a população. Descrentes, as pessoas em geral parecem não se identificarem mais (e isso já algum tempo) com as instituições que dizem respeito a essas relações; e isso vem produzindo um acúmulo, represado, de insatisfações das mais variadas. O que estamos presenciando nos últimos dias é a erupção destes profundos descontentamentos. Esta corrosão, entretanto, não pode carcomer a nossa capacidade, racional, de analisar a dimensão das coisas. De perceber o quão perigoso é abolirmos de vez as instituições que, mal ou bem, ainda trazem alguma coisa, de democracia legalmente representativa, capaz de evitarmos que entremos, como no passado, em um estado de barbárie e selvageria. Querer achar – e não são somente estes jovens que compartilham deste “achar”; parece pertencer ao senso comum (ouvir um senhor, já com bastante idade, que estava em uma das manifestações, dizer que ele não é partido nenhum, e acrescentou: “eu sou Brasil!”) – que podemos abolir o conjunto institucional político intermediador dos nexos entre o clamor das massas e aqueles – ou aquele (o que é pior) – que em última instância tomam as decisões que organizam a nossa vida na esfera pública, é no mínimo temerário.
Esse tipo de relação costuma trazer em si a ideia, moral [prefiro a ética; mas esta é uma discussão muito longa], de que é necessário alguém no governo, “com vergonha na cara” (!), apto a tomar as decisões que são realmente indispensáveis, mas sem a participação desses políticos que estão ali só para “se dar bem”. Tal pensamento (explícito ou não por parte daqueles que nele depositam suas ideias políticas), no extremo, pode vir a validar o discurso de que não é necessária a participação política de todos; salvo em momentos, limites, em que é imperativa a manifestação das massas na exigência de que apareça alguém “com vergonha na cara” e tome as tais decisões imprescindíveis, ou para apoiar este “com vergonha” contra aqueles “sem vergonha”. Isso, de relação direta entre massas e líder, cheira-me a fascismo; e na sua versão mais cruel (se é que é possível ser mais cruel), a totalitarismo.
Também podemos citar os muitos analistas que dizem acreditar que, nos dias atuais (pelo menos a partir da década de 80 do século passado), estaríamos vivendo uma espécie de natureza ou situação sociocultural nova na história da humanidade: a pós-modernidade; em substituição à velha modernidade. Para esses analistas, muitos dos valores oriundos da modernidade inaugurada, sobretudo, com o iluminismo do século XVIII, o das “Luzes”, estariam caducos; estariam ultrapassados e, por isso mesmo, incapazes de darem conta do confuso mundo em que vivemos hoje. Esses valores modernos se resumem, basicamente, na razão humana; em sua propensão de explicar o mundo e ordená-lo. Preiteiam, esses intelectuais não modernos, que as coisas não funcionariam assim hoje; que a razão não é soberana na orientação de nossas vidas; que as coisas, na maioria das vezes, são dadas pelo acaso etc. As tentativas de entendimento do mundo social por grandes padrões ou arquétipos explicativos advindos da tradição moderna, segundo os pós-modernos, não seriam mais válidos. A História, como disciplina, a título de ilustração, não existiria enquanto uma ciência humana; sendo, na perspectiva pós-moderna, uma área da Literatura, já que não haveria um modelo ou método de pesquisa racional que fosse capaz de reproduzir o passado; o que produz o historiador seria uma narrativa somente.
Para a política, o que estamos definindo como “modelo liberal” é tributário das práticas e valores moderno-iluministas. Portanto, este modelo, na perspectiva analítica pós-moderna, não estaria mais adequado para organizar a nossa sociedade, pois esta estaria, exatamente, vivendo uma natureza ou situação sociocultural pós-moderna. (Para uma melhor apreciação do que seriam os fenômenos da pós-modernidade e da modernidade, aconselho os seguintes autores: Benedict Anderson, Ciro Flamarion Cardoso, David Harvey, Emir Sader, Eric Hobsbawm, Fredric Jameson, Manuel Castells, Perry Anderson, Raymond Williams, Renato Ortiz, Stuart Hall e Zygmunt Bauman).
Há também as análises, críticas contra o pensamento pós-moderno, que enquadram muitos dos novos movimentos políticos, contrários às forças que representam o capitalismo, como vinculados às “esquerdas pós-modernas”, pois, em resumo, rejeitam, em suas ações, a influência de modelos cujos valores são considerados como pertencendo à tradição moderno-iluminista. Tais movimentos trariam em si uma espécie de esquizofrenia, uma irracionalidade, vazia, que seria inócua, portanto, contra as forças que pretendem combater, já que lhes faltam os mecanismos racionais da tradição moderna etc. Talvez, os atuais movimentos que vemos hoje nas ruas do Brasil sejam desta tal “esquerda pós-moderna”. (Também para uma melhor apreciação desta crítica a esta esquerda, aconselho o livro, publicado pela Jorge Zahar e organizado por Ellen Wood e John Foster, Em defesa da História: marxismo e pós-modernismo. Especialmente a Introdução, de Aijaz Ahmad, “O que é a agenda pós-moderna”).
Voltando à questão do abandono, na política, das instituições que mediam as relações entre Estado e povo, ao contrário do que possa parecer, não estou querendo dizer que, necessariamente, o atual movimento, encabeçado a partir de São Paulo pelo MPL (Movimento pelo Passe Livre), vá descambar em formas de relações sociais de poder semelhantes ao fascismo; só acho que precisamos estar atentos... Bastar olharmos a História... Vi pela televisão, por exemplo, muitos jovens, apartidários, impedindo – até sendo violentos – a participação de outros jovens que carregavam bandeiras, vermelhas, de partidos de esquerda, como PSTU, PT, PSOL, PCdoB etc.; agindo, portanto, como a polícia, que muitas das vezes é truculenta e tenta impedir que realizem democraticamente suas passeatas e reivindicações.
Nas décadas de 60 e 70 do século passado, todos sabemos, alguns jovens se aparelharam organicamente para lutarem contra um regime opressor, violento (sobretudo contra as classes populares; mas também contra a classe média, quando seus filhos mais radicais ousavam contrariar o regime) e a serviço do grande capital, nacional ou estrangeiro. Muitos desses jovens pagaram com a própria vida; mas contribuíram para que na década de 80 do mesmo século o Brasil reencontrasse a democracia. Os partidos rejeitados acima, em certa medida, são “herdeiros” legítimos desses jovens, e precisam, por conseguinte, serem respeitados (sem contar que a juventude que compõe estes partidos não está usando máscaras; ao contrário de muitos jovens partidários do apartidarismo, sejam eles “pacifistas” ou “baderneiros” – o anonimato, alguma das vezes, infelizmente, é um denominador comum entre estes dois grupos).
São muitas as variantes para se tentar dar conta de uma análise que ainda está por começar (e os intelectual das mais variadas especializações apressam-se, assim como eu, a apresentar seus pretenciosos diagnósticos nos meios de comunicação); afinal o movimento talvez esteja dando os seus primeiros passos. Acredito que o saldo – apesar do descontrole de uma minoria (mas isso não é inusitado, não é um privilégio único deste movimento) – será positivo. Está mais do que claro que nas próximas edições de seus livros didáticos de História, as editoras corram para incluir em suas páginas as manifestações ocorridas nestes últimos dias. Os professores de História do 3º ano do ensino médio – sobretudo dos cursinhos preparatórios –, com certeza, já começam a mencionar, ainda imprecisos e com certo receio, a possibilidade destes episódios já serem cobrados na prova do ENEM deste ano. E aí não tenho dúvida que uma das estratégias está sendo compará-los – em um link passado/presente – a semelhantes eventos que no passado de nossa História causaram, igualmente, impactos parecidos.
Ao escrever o final deste último parágrafo, ocorreu-me que, pelo menos, dois outros movimentos históricos no Brasil guardam muitas semelhanças com as atuais manifestações urbanas [mentira, já estava pensando nestes episódios antes mesmo de começar a escrever, só estava esperando o momento exato de encaixá-los; trata-se, portanto, de um recurso retórico meu]: A Revolta do Vintém, na cidade do Rio de Janeiro de 1879 (existiu outra revolta com o mesmo nome em Curitiba pelos idos de 1803; mas esta foi um pouco diferente – apesar ter tido, da mesma maneira, muito distúrbios), e A Revolta da Vacina, também no Rio de Janeiro, só que no ano de 1904 – portanto, uma no Império e outra na República.
Talvez comparar o que está acontecendo hoje com o movimento de 1879 seja o mais indicado, pois novamente trata-se da elevação do preço de embarque em um transporte público (ontem o vintém, os vinte réis dos bondes puxados por burros, hoje os vinte centavos); no entanto, ambas as revoltas são muito semelhante à atual “Revolta da Tarifa”. As três manifestações têm em comum, notadamente, a violência exagerada da polícia, o descontrole de elementos que “vandalizam” o patrimônio público e privado, a espontaneidade e a rejeição à “política formal”.
Gostaria de ressaltar, no entanto, que o que entendo como sendo o mais relevante a ser considerado como “semelhança”, não foi o objetivo – ou o título – que a primeira vista identifica cada um dos movimentos. Vejamos a Revolta da Vacina, por exemplo. O estopim foi, sem sombra de dúvidas, a lei da obrigatoriedade da vacina, proposta por Oswaldo Cruz e determinada pelo governo da “República Velha”; porém, a população menos favorecida da cidade estava, já há muito tempo, insatisfeita com um governo oligárquico e que não lhe abria nenhum canal de negociação política para que pudesse reivindicar suas necessidades básicas em termos de serviços públicos, como escolas e hospitais, ou mesmo coisas mais amplas, com leis trabalhistas etc. – sem contar que a Reforma Urbana do Rio de Janeiro, de Rodrigues Alves e Pereira Passos, embelezara a cidade sem, entretanto, beneficiar os mais pobres. Logo, a lei da obrigatoriedade foi só um pretexto; uma gota d’água em um copo já transbordando de desagrados vexatórios e insuportáveis. Hoje é a mesma coisa; o caso dos vinte centavos, na verdade, é somente um pretexto para que estes jovens gritem: BASTA!...             
Além destas intercessões, entretanto, verifico que existem algumas diferenças importantes. Primeiramente, creio que uma das principais diferenças seja o elemento de classe. Nas duas primeiras, o grosso dos manifestantes nas ruas era oriundo das classes populares (mesmo que na Revolta do Vintém as chamadas “classes médias” do Império tenham apoiado o movimento, quem realmente enfrentou as foças da ordem no centro da cidade foram os contingentes mais pobres). Já nas atuais manifestações contra as autoridades governamentais, percebo, posso está enganado, entre aqueles que compõem o grupo “pacifista” (em oposição àqueles que a mídia tem chamado de “vândalos”) um maior número de jovens de classe média (o que não descredencia o movimento como válido); com algumas exceções, é claro.
Toco agora num ponto que considero nevrálgico demais; precisando, portanto, ser tratado com muito cuidado, para não correr o risco de estar sendo levianamente preconceituoso [e é por isso que estou abrindo este novo parágrafo], como tenho visto por parte de alguns elementos dos meios de comunicação, que, no calor dos acontecimentos, deixam escapar seus “viciados” valores de classe. Em se tratando dos chamados “vândalos” ou “baderneiros”, percebo que a composição social é um pouco mais heterogênea. Tenho percebido elementos que me sugerem ser das classes médias misturados a outros das classes populares; menos nos fatos de violência, roubo e depredação ocorridos nas manifestações na Barra da Tijuca. Nestes, tudo parece indicar que foram adolescentes pobres dos bairros da Gardênia Azul e Cidade de Deus. Esse segundo grupo heterogêneo dos que se consideram “apolíticos” (o primeiro seria “os pacifistas”), “os vândalos”, surgem do nada e agem, a princípio, desordenadamente, sem uma liderança orientadora e constante, como que seguissem um sentimento violento de destruição a tudo que pareça pela frente (pode ter também, neste grupo menor de pessoas, algum tipo de violência com objetivos políticos e orquestrada por jovens de organizações de extrema direita, como os neonazistas, por exemplo).
O comportamento desses nossos “vândalos” é muito parecido ao manifestado em Paris, no ano de 2005, por jovens de suas periferias; que, em flagrantes acessos de uma ira incontrolável, invadiram as ruas da capital francesa incendiando carros, destruindo lojas etc. Esses “vândalos” franceses, em sua maioria, descendem de imigrantes oriundos das ex-colônias francesas, sobretudo africanas; e, portanto, além de pobres, são negros e mestiços.
Lembro-me perfeitamente que na época intelectuais de fama internacional, como sociólogos, dentre outros, analisavam que tais manifestações espontâneas, violentas e não liderada por partidos, eram resultado de uma aguda e colossal insatisfação a tudo que representa a política formal da França e a prosperidade da classe média branca daquele país. A razão desta insatisfação se deu por um sentimento, pertinente, de que a classe média francesa e sua política excludente não os representam, não se preocupam com eles e os renegam a um limbo periférico, que além de geográfico é também econômico, social e cultural. Então porque preservariam aquilo que não lhes diz respeito; mas do que isso, não os respeita, não os protege, não os ajuda, ignora-os e lhes prejudica (basta ver como a polícia parisiense os trata). Podemos dizer – e é o que se costuma dizer com muita propriedade – que se trata também de jovens sem perspectivas para o futuro e que por isso agem como se nada tivessem a perder (e como resultado de políticas neoliberais, não têm mesmo).
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, famoso por suas versões “Líquidas” da Arte, do Amor, do Tempo, da Modernidade, da Vida, do Medo etc., em entrevista ao Jornal O Globo, em Agosto de 2011, disse, a respeito de distúrbios semelhantes ocorridos em Londres, cujo foco foi o saque, por parte de jovens, em lojas de marcas e grifes importantes, que o ocorrido foi uma espécie de “motim de consumidores excluídos”. Sintetizando (e interpretando de forma, digamos, um pouco “livre” a análise de Bauman), em uma sociedade, individualista, que valoriza sobre maneira uma cultura do consumismo; mas, ao mesmo tempo, com políticas econômicas que potencializam a exclusão, jovens socialmente à margem deste consumo foram às “compras” a sua maneira, que prescinde dos valores morais construídos pela sociedade moderna. O parecer de Bauman pode ser agregado, talvez com algumas ressalvas, ao mosaico de explicações sobre o comportamento, específico, de alguns poucos jovens brasileiros nos distúrbios dos últimos dias, especialmente nos ocorridos na Barra da Tijuca.
Temos, para o exame dos problemas que as convulsões sociais provocadas por nossos jovens estão nos causando, muitas possibilidades. Falta de perspectiva para o futuro, em função de que a sociedade não estaria oferecendo a possibilidade de existência desta perspectiva; jovens sócio e economicamente excluídos de consumirem em uma sociedade cujos principais apelos midiáticos são para o consumo; desprezo a um modelo político que acreditam que não os representa; uma intensa insatisfação com a situação do pais (muitos político corruptos, serviços públicos ruins, passagens caras etc.), que no seu extremo se apresenta como uma raiva incontrolável e destruidora; a existência, hoje, de uma “condição pós-moderna” (esta explicação é a que menos me contempla); os atuais movimentos seriam da “esquerda pós-moderna” (e se forem, não acredito na capacidade de transformação social desta esquerda) etc., etc., etc...
A dificuldade, no entanto, que se apresenta aos nossos olhos encontra-se exatamente nos primeiros vocábulos do parágrafo acima: “problema”. Não podemos encarar tais manifestações como um “problema”; nem mesmo os quebra-quebras ocorridos. Tenho consciência de que era melhor que as amostras de “vandalismo” não tivessem acontecido; mas, como já adiantei mais acima, infelizmente não tem jeito – é mesmo impossível que não tivessem acontecido. Todas as grandes manifestações físicas e populares, no tempo/espaço, inclusive as revoluções, não ocorreram sem aqueles indivíduos e grupos que, mesmo sendo minorias, saem do controle e assustadoramente exageram em suas ações violentas. Aproveitando-me de uma figura de linguagem já explorada por um eminente técnico de futebol brasileiro (senão me engano), não dá para fazer uma omelete sem quebrar os ovos...
Esses jovens, em sua maioria, estão nos dando uma lição. Mesmo com a minoria “vândala” e com o sentimento apolítico da maioria (e quiçá, especularei, estes jovens não tenham lideranças formais por exatamente temerem que estas se tornem, com o tempo, devido à popularidade que a liderança pode lhes proporcionar, políticos tradicionais), vejo luz no fim do túnel. Pego o exemplo de minha filha, que foi às passeatas no centro do Rio sem pedir minha autorização, mesmo sendo menor-de-idade. Confesso que o meu primeiro sentimento foi o de pai, e pensei em proibi-la; mas o cidadão político e professor de História, que inclusive foi lembrado desta condição pela própria filha, acabou falando mais auto (e o pai ficou com o coração na não de tanta preocupação – lembrei-me da peça do Brecht, “A Mãe”, em que em tempos revolucionários uma mãe é contra a revolução porque teme pela integridade física de seus filhos. Nesta peça, a mãe é a vilã paro o autor; entretanto, o público, identificando-se com o sentimento materno, a elege como heroína).
Minha filha, como a maioria de sua geração, nunca tinha se interessado muito por política; mas ultimamente a coisa tem mudado lentamente. Disse, nas últimas eleições, que simpatizava, mesmo não sendo filiada, com o Freixo do PSOL, e me criticou por não pensar a mesma coisa. E, no que diz respeito aos atuais episódios no centro do Rio, ela escreveu uma redação no cursinho pré-vestibular sobre o que intensamente vivera nas manifestações de rua, que foi lida pela professora para toda a turma. Minha filha tá toda orgulhosa. Pela redação? Também. Mas especialmente por sua participação, decisiva, na História do país. Sim, vejo luz no fim do túnel...

sexta-feira, 26 de abril de 2013

As Minhas Musas, Cantoras Interpretes


Sei que muita gente vai discordar, pois, como em todas as escolhas, muitas ficaram de fora (inclusive, gosto de muitas que ficaram de fora); mas minhas interpretes norte-americanas preferidas são Narah Jones, Billie Holiday, Madeleine Peyroux, Diana Krall (eu sei, ela é canadense; mas vai lá, da língua inglesa – sem contar que é linda) e a novata Melody Gardot (que o Brasileiro Heitor TP – guitarrista que adoro – a produziu em alguns trabalhos mais recentes). Talvez goste um pouquinho menos das que encabeça e encerra esta pequeno rol.
Estou escrevendo esta “notinha” porque li um artigo hoje (26/04/13) do Arthur Dapieve no Segundo Caderno de O Globo, “Resgaste na Pista”, em que ele faz uma comparação, muito interessante, entre duas duplas de cantoras, de um lado, Marlene x Emilinha e, de outro, Peyroux x Krall. O argumento dele é que, tal como na famosa disputa entre os fãs, na Era de Ouro do Rádio no Brasil, entre Marlene e Emilinha Borba, os fãs de Madá e Krall hoje discutem e disputam também qual seria a melhor – certamente em contendas não tão acirradas como foram as nossas no passado.
Dapieve logo de cara revela preferir Madeleine (já eu gosto muito das duas). Ele diz que escreveu o artigo porque, de quando em vez, tem uma discussão com um amigo que é fã de Krall (e este teria falado, depreciativamente, que Peuroux “mia” que nem uma gata; e acrescento, uma linda Gata). Não me lembro direito quando conheci Kroll (quem sabe, pois igualmente gosto muito de Rock, por referência a Elvis Costello, já que este sortudo é seu esposo); mas com certeza apaixonei-me imediatamente ao ouvi-la (como não gostar, por exemplo, de sua interpretação, cantada e tocada no piano por ela, de Just the Way You Are, de Billy Joel? Cuidado, há uma composição de título homônimo, do havaiano Bruno Mars, que, desculpem-me seus fãs, desaconselho). Todavia, recordo-me razoavelmente de como tive contato com Madeleine. Acho que têm mais ou menos uns seis anos que ouvi, à noite, o Nelson Motta comentar na rádio sobre uma cantora de Jazz, com nome afrancesado e com um timbre e jeito de cantar semelhante ao de Billy Holiday, que ele dizia ser muito interessante. Colocou uma música para tocar e aí adorei.
Confesso que foi exatamente o fato de Madeleine lembrar-me muito Billy Holiday que me tornei seu fã. Sei que aquela não gosta muito de ser lembrada como semelhante a esta – o que é uma pena, adoraria ver uma reprodução de Peuroux dos maiores hits da Billy. Agora vou confessar outra coisa: de todas as que listei aqui como as minhas preferidas, a que mais gosto é Billy Holiday. Em composições como, Me, myself and I (existe outra composição de título homônimo gravado por Beyoncé, que, desculpe-me mais uma vez a pretensão, também não aconselho), Summertime (também imortalizada por Janis Joplin) e I’M a Foll to Want You, dentre outras, ela demonstra toda a sua emoção à flor da pele. Esta é a sua maior marca: a emoção de uma vida densa, vivida cheia de sofrimentos. E aí farei uma comparação que não sei se gostarão: quando ouço Billy Holiday sou tomado de uma emoção deveras igual àquela que sinto ao também ouvir Elis Regina.
É isso mesmo, as duas, cada uma a seu jeito, tiveram vidas conturbadas, polêmicas e cheias de dor. Não quero dizer com isso que todas as cantoras – principalmente as interpretes – precisem, como num estágio, passar por uma temporada de consternação, mágoas e sofrimento; mas hão de convir, que o que passam de sentimento em suas interpretações só é possível porque viveram estes sentimentos. Então, para mim, Elis Regina e Billy Holiday são as maiores interpretes de canções, de todo o mundo e de todo os tempos, que já tive a oportunidade de ouvir; pois são as que mais conseguem emocionar-me. Emoção, este sentimento, que quando suas notas melancolicamente entram em meus ouvidos, perturba-me, causa-me ora consternação ora ternura; ou seja, ainda que por um breve momento, modificam meu estado de espirito de forma intensa, em um misto de tristeza e, logo depois, de alegria, já que fico feliz por ter me emocionado; e penso: como é bom ouvir uma bela canção. Obrigado minhas musas.

sábado, 20 de abril de 2013

Tal como a Vida, Escrever pode ser muito Arriscado


Tal como a vida, um texto nunca está pronto. Estamos sempre a reescrevê-lo toda a vez que nos deparamos com ele; nunca está pronto. Se vivêssemos para sempre, infinitas seriam as reedições das coisas que escrevemos. A esperança desses textos, que sofrem em nossas mãos, com esta pretensão inútil de sermos perfeitos, é a nossa morte, inexorável e infalível. Contudo, assim como um filho (sei que isso é um clichê de quem se afeta por uma vaidade dissimulada), quando morremos, ele fica por sua conta e risco, e sua sobrevivência, agora, só depende dele, não estaremos aqui para aconselhá-lo, mudá-lo etc. Sua história também não será infinita; sua validade, importância e atualidade serão os critérios de sobrevida. É como Guimarães Rosa disse: viver é muito arriscado; e incluo, inclusive para um texto que ganha vida própria com a morte de seu autor.
Quando escrevemos em um blog, creio, esta incompletude é potencializada pela possibilidade de estarmos sempre entrando, quando on-line ou não, nas configurações e reeditando e salvando as mudanças na redação do mesmo documento; mas será que é ainda o mesmo texto? Esta questão me aflige. Trata-se de uma desvantagem; ao contrário do que se possa pensar, pois com as possibilidades desta ferramenta de mídia eletrônica, nunca me livrarei da vontade de aperfeiçoar o que redijo. Quando escrevo para este blog quase sempre é alguma coisa que leio, que escuto, que lembro, que me suscita alguma ideia e que não consigo deixar de colocar pra fora, e ai sento diante desta tela, que agora me contempla, e saio escrevendo como quem, digamos, “vomita” (exagerei, né?...) sobre alguma coisa, no caso a tela do computador. Na ansiedade de tornar pública a ideia, posto-a rapidamente; e depois vem o arrependimento. Sem mesmo precisar de se lembrar do conselho de Drummond, de que escrever é contar palavras, começo a polir, lustrar e retocar daqui e dali, até que me canso e deixo pra lá, com aquela sensação de que perdi um tempão, de que ainda não está bom e que, na verdade, não sei escrever direito.
Tenho uma hipótese de que escrever é um exercício, que precisa, exercitando-se, ser muito praticado na busca de perfeição. Mas comigo, nunca consigo achar que estou pronto – deve ser isto mesmo, nunca se está pronto. Fico pensando como deve ser escrever, por exemplo, um romance... É claro que o texto final é, exaustivamente, revisto. Mas acho, igualmente, que o problema de escrevê-lo rapidamente e torná-lo público também rapidamente não existe; no entanto, o problema é outro: saber escrevê-lo. Acho que por enquanto não preciso me preocupar com isso...

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Morre Margaret Thatcher. Já vai tarde.


Morreu hoje pela manhã aquela que ficou conhecida como “a Dama de Ferro”, Margaret Hilda Thatcher. Primeira ministra britânica de 1979 a 1990, Thatcher, em seu país, foi responsável por uma política de desregulamentação da economia e, dentre outras coisas, também por uma das mais virulentas flexibilizações das regras trabalhistas (os mineiros ingleses que o digam) que pôs o trabalhador britânico refém, tal como um “operário pré-ludista”, das regras de mercado; regras estas que todos sabem são controladas pela burguesia.
Thatcher na Inglaterra, Ronald Reagan nos EUA e o General Augusto Pinochet no Chile (inclusive este antes dos outros dois), deram início prático, na década de 80 (“a década perdida”), àquilo que ficou conhecido como neoliberalismo (no caso da América Latina, por exemplo, ver o que José Luiz Fiori diz sobre “O Consenso de Washington”). Pensadores da Economia Política de direita, como o norte-americano Milton Friedman, da escola monetarista de Chicago, e o austríaco Friedrich Hayek (considerado o pai do neoliberalismo), de “O Caminho da Servidão”, são recuperados em nome da eficiência dos governos contra a ineficiência dos Estados e quase meio século de conquistas, relacionadas ao “bem estar social”, são jogadas no lixo e o mundo, no início deste milênio, mergulha em uma grande crise.
Pessoas como Thatcher fazem parte da História como aquelas que contribuem para que o mundo continue sendo um mundo de excluídos. E agora vai começar um monte de gente a nos “encher o saco” com elogios sobre seu lado forte como governante etc. Prefiro dizer que sou radicalmente contra as suas ideias, que estou do outro lado e que penso que a construção de um mundo melhor é possível; mas este mundo melhor só será viável de fato, se políticas contrárias às aplicadas por Thatcher passarem a dominar o cenário mundial.

domingo, 7 de abril de 2013

A sua Opinião, doe a quem doer


O pior de tudo para mim é que um Paulo Francis faz muita falta hoje no jornalismo brasileiro. Toda vez que leio ou ouço o Paulo Francis dar uma opinião sobre alguma coisa, que muitas das vezes não era tão polêmica assim e ele a transformava em uma discussão de extrema controvérsia, tenho um sentimento deveras contraditório, em que um dos lados é muito radical: há horas que o acho genial e outras que quero matá-lo (matá-lo mais uma vez, pois fico sentindo vontade que ele venha do túmulo para matá-lo de novo).
Tudo bem, um homem muito culto e de uma inteligência impar, etc. etc. Contudo, não é deste lugar comum que quero falar. Escroto com seu preconceito explícito, dentre muitos outros, contra os nordestinos, por exemplo, o Paulo Francis levantou, em relação a ele, ódios que considero justificados. Mas continuo insistindo, não é isso que quero falar sobre este jornalista de opinião (que Caetano – que é outro dado a muitas polêmicas – uma vez dissera ser uma “bicha amarga”, por não concordar com uma crítica que Francis fez sobre uma entrevista sua a Mick Jagger); quero lembrá-lo, mais do que isso, enaltecê-lo mesmo, por ter tido sempre, ou quase sempre, uma opinião não só contrária como muito ácida contra aquilo que considerava principalmente óbvio.
Sejamos um Paulo Francis em seu espírito de contestação, de ser do contra. Se de fato resolvermos ser um Paulo Francis, aproveitemos somente sua veia polêmica. De minha parte, se esta for a decisão, rejeitarei o Francis republicano, de direita e elitista. Claro, muitos dirão (os detratores e admiradores) que rejeitar este Francis é, na verdade, rejeitá-lo como um todo; é verdade... Mas é isso que quero fazer, pegar de Paulo Francis este espírito que o marcou: a crítica acre e veemente contra o que todos dizem que é normal.
Estou neste meio de comunicação virtual para colocar pra fora aquilo que me incomoda. Irritam-me muito aquelas coisas proferidas como um pensamento, incontestavelmente, único, e que considero como sendo óbvio que tenha outra possibilidade de opinião. O fato de muita gente boa não perceber estas possibilidades, e comprar tudo já pronto e embrulhado para viagem, escarnece-me. Desculpem-me a agressividade e se soa pretensioso, mas acho isso uma idiotice, e é por isso que estou tentando recuperar a imagem de um intelectual que defendeu, diametralmente, o oposto do que acredito como teses políticas: Franz Paul Trannin da Matta Heilborn, nascido no Rio de Janeiro (1930-1997), de juventude trotskista e pós-juventude liberal, nova-iorquino postiço e que pertencia a uma espécie de jornalista hoje em extinção, os que dizem sua opinião, doe a quem doer. 

quarta-feira, 3 de abril de 2013

A Isca e o Anzol


para este ano de eleição...


Tudo bem, não vou discordar; é claro que José Dirceu foi condenado, dentre outas coisas, por sua arrogância, por comandar um esquema de compra de apoio de parlamentares corruptos, talvez, quem sabe, por ser de esquerda etc.; contudo, o que ele disse nos últimos dias do mês de Fevereiro (deste ano) a militantes catarinenses de seu partido, pode, sim, ter alguma coerência. Ele só disse o seguinte (mais ou menos assim – adaptando a sua fala): gente, retroagimos em termos de direitos políticos, pois “a Lei da Ficha Limpa” está condenando quem ainda não foi definitivamente condenado, segundo, exatamente, o que diz a nossa Magna Carta, aquela que, em qualquer país verdadeiramente democrático, não pode ser contrariada por nenhuma outra lei que, obviamente, está abaixo dela; ou seja, esta lei, a da “Ficha Limpa”, está se antecipando à própria Justiça, de onde ela é tributária, “condenando” previamente quem ainda não foi julgado em última instância – e acrescento: e se uma pessoa que esteja pleiteando o direito a uma candidatura eleitoral, e contra a qual exista um processo em tramite na Justiça, for impedida em sua intenção política pelos critérios da “Ficha Limpa” e mais tarde a Justiça, em última instância, entender, por novas provas documentais acrescentada ao processo, por exemplo, que essa pessoa é inocente, o que fazer?
Ele disse mais – que igualmente considero no mínimo razoável. Nas últimas eleições, dentre os partidos de maior peso, os percentuais de políticos impedidos pela Lei foram de 37% para o PSDB, 34 para o PMDB, 17 para o DEM (partido em extinção) e 4 para o PT. Desses percentuais, muitos estão relacionados, enquanto “crime”, à Lei de Responsabilidade Fiscal. Quando os administradores públicos, de qualquer lugar do país ou de qualquer instância do poder, gastam mais do que fora previamente estabelecido na forma da lei, pode ser detectado pela fiscalização dos Tribunais de Conta como que infringindo a LRF. Nestes casos, o não respeito a este código de conduta nem sempre está relacionada, necessariamente, à corrupção, por exemplo; podendo ser uma resposta imediata a contingências que tenham surgido, etc.
José Dirceu quis dizer que na intenção, moral, de se “limpar” a política, podemos estar cometendo injustiças irreparáveis, ainda que no curto prazo, o que concordo (experiências passadas, Jânio Quadros, Collor etc., nos dão conta disso). Não sou insano ao ponto de ser contra esta lei moralizadora; no entanto, ela não está acima do bem ou do mal, e por isso imune, simplesmente, de ser discutida por quem quer que seja; haja vista ser exatamente no debate (e aí os contrários precisam, pelo menos, se ouvirem) que as instituições democráticas são aperfeiçoadas – ou meramente vale a lei pela própria lei? Dito de outra maneira: um código normativo legal, criado pelo homem, é alçado à condição de ente, ser vivo criado pela natureza, e contra ele não podemos ir sob pena de estarmos atentando contra a vida? Que exagero; a lei tem que servir aos homens e não o contrário.
O mais interessante, curioso mesmo, foi a matéria publicada sobre o assunto no jornal O Globo em 23 de Fevereiro. Relata o ocorrido; no entanto, sem perguntar ou pedir ao próprio Dirceu para que ele explicasse melhor seu ponto de vista. O artigo parte de princípios preestabelecidos, dos “bons costumes” políticos, de que o pensamento de José Dirceu, em síntese, está totalmente comprometido (e quem não está?) para pronunciar ou teorizar qualquer coisa que seja no âmbito da política (que é uma coisa pública – e dizer isso é um pleonasmo). A parcialidade do jornal – que a princípio deveria ser isento (mas concordo que ninguém o seja, o problema é quando não se assume) – é no mínimo patente, gritante e por isso salta aos olhos. Todos que são ouvidos na reportagem da matéria, creio que intencionalmente, ou são contra o Dirceu, ou contra sua ideia ou defendem, intransigentemente, a Lei; pasmem: nenhuma voz dissonante (!). Pelo amor de deus [sei que os cristãos pedirão para grafar com inicial maiúscula; mas isso é uma outra história], a lógica nos pede que sejamos racionais e discutamos as coisas, sobretudo se estamos tratando de política; do contrário, é totalitarismo transvestido de “liberdade de imprensa” (outra coisa sagrada, com valor em si mesma, que não podemos discutir).
Ao contrário do que possa parecer, não sou fã do Dirceu e nunca fui e acho que ele tem que pagar pelo que fez (mas com uma ressalva: não podemos enquadrar seu delito na ceara dos crimes comuns; há de haver aí, da mesma maneira, uma discussão, pois se trata de questão política – se quiserem, gostaria de debater isso também mais tarde). Mas me incomoda muito perceber que as pessoas repetem as coisas – tal como os papagaios – sem de fato refletir a fundo sobre o que estão reproduzindo. São pessoas que se consideram críticas; mas que na verdade não o são. “Criticar” (palavra de origem grega) não é simplesmente falar mal acreditando que só isso é suficiente; o sentido “Aureliano” deste vocábulo tem como explicação inicial a concepção de análise sobre o que se quer, por algum motivo, censurar ou comentar. Mas tem muita gente boa acrítica que se julga crítica, no sentindo amplo deste conceito. E no caso específico do que estamos falando, o jornal O Globo é um dos maiores “vendedores de peixes” deste país (assim como o Estadão e outros); sua reputação ou fama faz com que as pessoas “comprem” o seu “peixe” sem se perguntarem sequer a procedência; quando uma simples “cheirada” já bastaria.



sábado, 30 de março de 2013

Ninguém vai ao Pai, senão por Mim


“Ninguém vai ao Pai, senão por Mim”
                                                           (Jo – 14.6)



É, não tem jeito; tenho que aceitar, me conformar e ficar quieto perante o meu leve ciúme em relação a minha esposa e minha filha ficarem babando, mais uma vez, pelo desempenho deste rapaz chamado Wagner Moura – e na verdade não tem mais sentido ficar falando este lugar comum de que é um novo talento da dramaturgia brasileira; seu talento já é fato consumado.
Desde pelo menos a primeira Tropa de Elite, que a mulherada fica toda derretida com seu uniforme de blusão preto por dentro das calças e dobrado nas mangas compridas até a altura do cotovelo. (Marmanjões, esta é a dica... Apesar de que tem homem, mesmo sendo hetero, que se veste pra outro homem; coloca, por exemplo, aquela camisa polo “maneira” com uma listra grossa atravessando o peito para os amigos verem que ele tem este tipo de camisa).
Mas deixa de ficar enrolando. Estou aqui para falar deste último filme em que Wagner Moura é o protagonista, “A Busca”, dirigido por Luciano Moura. Filme com um elenco enxuto, traz um pai, o médico Theo Gadelha de 35 anos, estrelado exatamente por Moura, desesperado a procura de seu filho, Pedro, que fizera 15 anos recentemente. O garoto, pra resumir, cansado dos problemas emocionais causados pelo desiquilíbrio do pai, foge de casa montado num cavalo (isso mesmo, um menino urbano a cavalo e fugindo) e Theo sai pelas estradas de São Paulo indo até ao Interior do Espirito Santo. Na verdade, este pai perdeu seu filho em dois sentidos; emocional, primeiro, e depois fisicamente; portanto, tanto a fuga quanto a busca acabam sendo, cada uma delas, em dose dupla.
O personagem de Wagner Moura tem com ele guardado uma mágoa muito forte da ausência de seu pai, vivido por Lima Duarte. Para compensar, e não cometer o mesmo erro paterno, Theo tenta ser um pai muito presente; e ai exagera, ao ponto de sufocar, com esta presença absoluta e quase “despótica”, a autonomia de um adolescente que, como todos os outros, está em busca de experimentar os erros e acertos que esta fase da vida pode proporcionar. Seu afã por acertar enquanto pai, e também como esposo, fez com que perdesse a família; pois não vivia mais com sua mulher, Branca.
Nesta sua busca frenética pelas estradas de três estados, Theo vai seguindo as pistas que Pedro deixa pelo caminho, como as migalhas de pão da história de João e Maria; porém, para a sorte de Theo, não havia pombos a comer tais migalhas. É seguindo os rastros do filho que Theo percebe que não o conhecia de fato, e fica encantado com o que descobre. Montando o quebra-cabeça da estratégia para a busca do filho, Théo percebe que este estava indo ao encontro do avô paterno, que não conhecia; logo ele, seu pai, que no passado o negligenciara. Theo percebe também que precisava encontrar e perdoar o pai primeiro para encontrar e ser aceito por seu filho; e é isso que ele faz.
Basicamente é esta a história. Não sou um crítico de cinema e nem faço parte da produção do filme na procura de promovê-lo; contudo, não poderia deixar de registrar o quanto fiquei comovido com este filme, lindo, e, igualmente, com a atuação de Wagner Moura. O filme tem um roteiro ao mesmo tempo simples e profundo; muito bem encaixado na fala dos personagens, que por sinal são muito bem montados, pois, com poucas falas e muita manifestação de sentimentos, percebemos toda a intensidade do que eles são ou representam na trama – pelo menos os mais importantes. Por exemplo, Wagner Moura, na primeira tomada do filme, tem uma explosão de ira contra seu filho, onde as falas são mais guturais do que articuladas, que dá para compreendermos não só toda a complexidade psicológica do personagem, como também a contextura sentimental vivida pela família.
O filme me fez viajar em meus próprios sentimentos enquanto pai; mas também me fez interpretar coisas paralelas a seu enredo. Vislumbrei, pretensiosamente, uma fala oculta no texto do filme: só se chega ao pai pelo filho. Parece-me – obviamente segundo uma interpretação minha – que a história é uma metáfora da relação judaico-cristã entre o Deus criador e o seu filho enviado a nós, Jesus Cristo; e são, os dois, o mesmo ser – Deus que se fez filho para salvar nossos pecados. Numa relação não linear e sim em círculo, uma tríade se forma com três vértices: filho, pai e avô; onde o conhecimento de cada um dos vértices, pelos seus membros, depende de um conhecimento em conjunto.
Não sou especialista em cinema, mas sou daqueles cinéfilos que até ver filmes ruins (li esta frase em um romance ou conto de Rubens Fonseca, que não me lembro agora qual), quanto mais um que é excelente; portanto, gosto de filmes e sempre ouvir dizer que um bom filme é aquele que bota agente para pensar, e “A Busca” me provocou isso. Um filme não pretensioso que em certa medida espelha, talvez, uma determinada tendência atual do cinema nacional de produzir bons filmes sem a necessidade, imaginada por alguns intelectuais, de serem obtusos para a maioria do público médio, como eu. Os chamados filmes “cabeças” têm o seu papel a cumprir; mas existem aquelas horas que queremos ir ao cinema e ver um bom “filme pipoca”, feito inteligentemente para o lazer.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Pau para Toda a Obra




Uma verdadeira Fênix; toda a vez que muitos pensam que está prestes a morrer, renasce das cinzas. Estou falando da Igreja Católica, e poderia enumerar muitos casos que ilustram o que acabei de afirmar, como, por exemplo, aquilo que ficou conhecido nos EUA, de finais dos anos 60 do séc. passado, como Renovação Carismática Católica ou simplesmente Movimento Carismático; com práticas semelhantes às das igrejas protestantes pentecostais, onde a Eucaristia preside quase tudo em importância, se recebe o Espírito Santo e se “fala em línguas”, dentre outras coisas.
Aqui no Brasil tal movimento entra um pouco depois, na década seguinte de seu surgimento norte-americano; ou seja, no início dos anos 70, chegando ao auge com os clérigos cantores, como o Padre Marcelo e companhia. Na época, empiricamente, percebi que o Movimento Carismático estava desalojando, em termos de importância, a Teologia da Libertação – pelo menos na América Latina, de onde é originária. Com sua opção política e ética, de esquerda, pelos pobres (influenciada por uma pedagogia teológica da ação, pelo Concílio Vaticano II (1962-65), pela Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino Americano, em 1968 na cidade de Medellín, etc.), essa tendência teológica foi acusada de materialista, marxista e tudo o mais que o pensamento conservador rejeita. A cúpula da Igreja em Roma reagiu; e sob a acusação de substituir o pecado individual pelo institucional, coletivo e sistêmico (por exemplo, um Estado que, com sua política econômica a serviço dos mais ricos, promove a pobreza, é uma instituição pecadora), puniu os padres que pregavam coisas como “a luta-de-classes” em seus sermões. Para a Igreja, parece que não interessava muito que seus religiosos fincassem os pés na realidade concreta, pois seu objetivo é espiritual; e assim, padres carismáticos, voltados para o interior metafísico daquilo que produziria a fé, eram mais úteis ao rebanho – não discutamos a pobreza da carne e sim a da alma.    
Pois é, a nossa Fênix – é óbvio – tem uma História. Já foi, de início, uma religião de escravos no Império Romano; e deste herdou, por quase toda a Europa Centro-Ocidental do medievo, um poder que se não era de Estado se fazia presente em tempos de muita descentralização política. A Igreja medieval funcionava como uma grande “Senhora Feudal”; mas não saiu incólume da crise do feudalismo e do renascimento comercial urbano do final da Baixa Idade Média. Nos primeiros anos da Época Moderna, homens como Lutero e Calvino lhe subtraiam os fiéis. Claro que reagiu. Medidas foram tomadas no Concílio de Trento e o Papa oficializou, transformando em ordem, a Companhia de Jesus, criada por Ignácio de Loiola após as Cruzadas.
Os jesuítas eram novatos enquanto ordem, se comparados a franciscanos, dominicanos e beneditinos; porém, levavam para a Igreja a fama de sérios, dedicados, estudiosos da palavra  e zelosos da hierarquia, e por isso ficaram conhecidos como “os soldados de batina”. É claro que a oficialização da nova ordem era uma estratégia de moralização da Igreja, envolvida em escândalos relacionados às mais variadas práticas de “simonia”, como a venda – e não a prática – de indulgências.  A partir de então, com sua obediência incondicional à Santa Sé, trouxe para si a responsabilidade, como missionária, da catequese para o “Novo Mundo”. No caso do Brasil do século XVI, em São Paulo, foram os jesuítas que, por exemplo, fundaram a nossa primeira escola (foram tão importantes no mundo lusitano, que o Marquês de Pombal, em meados do séc. XVIII – o das “Luzes” –, na busca da modernização da estrutura política e econômica de Portugal, os expulsou de todo o território português, no reino e no além-mar, sob o pretexto de serem arcaicos etc.).
Alguns séculos se passaram; e a Igreja de Roma, mais uma vez, se vê envolta em escandalosas denúncias, como os casos infames de pedofilia. E um papa germânico, sisudo, possuidor de, não menos, quatro doutorados não é capaz – ou pelo menos não o quis – de moralizar a igreja. Não se trata somente de moralização; temos também o fato de o mundo ter mudado muito. Uma individualidade mais acentuada (quiçá para além do que previram os mais radicais liberais de outrora) libera o indivíduo para ser o que queira ou acredita ser; não se constrangendo mais com o que a sociedade diz ou quer que ele seja; e a Igreja não está atenta a esta mudança. Ou se está, não aceita; haja vista, por exemplo, se pronunciar contra o casamento gay.
E o Papa germânico renuncia (botando mais lenha na fogueira com seu misterioso dossiê). A escolha do novo Pontífice foi pautada por, no mínimo, estas duas exigências; um misto de moralização e modernidade (ainda que nem todos os cardeais a queira). Uma autoridade eclesiástica que consiga conciliar, ao mesmo tempo, o punho forte contra os desmandos dos escândalos sexuais e de corrupção, de um lado, e a mão estendida aos novos ventos contemporâneos (modernos ou pós-modernos), de outro.
Creio que a escolha não recaiu em nenhum nome que contemplasse, de fato, estas duas necessidades – em conjunto ou isoladas. Mais uma vez a Igreja recorreu, como no século XVI, àqueles que de fato pode contar: os jesuítas; eles, de fato, para a Igreja, são “pau para toda a obra”. A escolha do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, a meu ver, significa escolher alguém disposto a lutar pela Igreja, pela sua defesa, e com as características de luta da Companhia de Jesus: disciplina, lealdade, moralidade, o ensino religioso e a catequese conquistando mais almas em momentos de fragilidade da Igreja (no passado, acuada pelas críticas e denúncias, verdadeiras, dos protestantes; hoje, pressionada pelas exigências e necessidades contemporâneas, outrossim verdadeiras, da opinião pública).
Não entrarei na polêmica sobre seu passado de conivência ou não com a ditadura argentina, já que uma das mais importantes e intensas acusações vem de um colaborador do Governo Kitchener, do qual o Papa Francisco se mostrou desafeto; portanto, pode, nesta acusação, estar pesando algum tipo de parcialidade, e não quero ser leviano. (Apesar de que me parece consensual, para muitos – não a maioria; mais um número não desprezível –, de que pelo menos a omissão, quantos aos crimes da ditadura argentina, não seria, para o atual Francisco, uma injusta afirmação). Polêmicas a parte, o fato é que o Papa jesuíta, como era de se esperar, está se saindo muito bem. Mostra-se exatamente como “o oposto” do que fora Ratzinger (na verdade sem o ser; nem um nem outro querem mudanças radicais na Igreja); é simpático, piadista, bem humorado, beija criancinha na praça etc. – e isso não importando muito que esteja se expondo ao perigo; imaginem um atentado de um extremista qualquer que venha assassiná-lo, mergulhará não só a igreja mais todo o mundo em uma profunda crise; ele não pode se esquecer que sobre seus ombros pesam muitas responsabilidades.
Joga para a torcida (e talvez esteja sendo sincero), afinal é comum entre os populares que seus líderes apareçam sem “frescuras”; alivia o núcleo duro da cúpula episcopal, pois tudo indica que reformas radicais não virão; e responde aos anseios dos setores “médios” da “opinião pública” internacional com seu posicionamento – correto (diga-se passagem) – contra a pedofilia na sua Igreja. No entanto, mais uma vez, quiçá, a Igreja perde a oportunidade de entrar no séc. XXI, quando este clama pelos direitos das minorias que se autoproclamam em novas identidades subjetivas – e por isso são agredidas física e moralmente. Já perdera a oportunidade, na segunda metade do século passado, de se sintonizar com as tendências progressivas da “sociedade mundial” do Ocidente, quando existia uma preocupação um pouco mais acentuada em se criticar os saldos negativos, na conta dos trabalhadores, provocado pelo Capitalismo (pelo menos até o início da “década perdida”).
Em termos das ideias mais profundas, além de ações meramente pragmáticas, penso que os mais importantes teólogos do Cristianismo, sobretudo católicos, desde o medievo, pelo menos (e neste período a Teologia continha a Filosofia, e não o contrário, como hoje), acompanhem, pari passu, a produção filosófica de maior importância no Ocidente. Creio, igualmente, que neste sentido, o Cristianismo supere as outras duas grandes religiões concomitantemente confessionais e monoteísta, com as quais tem parentesco, o Judaísmo e o Islamismo. Começando do começo, na Idade Média, duas grandes tendências do pensamento teológico católico dividiram as atenções de seus fiéis (e cada uma delas cheias de variáveis). Na Alta Idade Média temos a continuidade dos primeiros passos, dados por pensadores do Império Romano, nesta direção: a Patrística, como é conhecida por muitos. Nesta tendência destaca-se Santo Agostinho, em cuja obra se percebe uma grande influência do idealismo platônico, como era de se esperar de um pensamento religioso; sendo que, em resumo, a Ideia de Platão para Agostinho é Deus – daí a concepção, absoluta no século XVI por Calvino, da predestinação para a salvação da alma. O apóstolo mais consultado não poderia ser outro do que Paulo, que não conviveu com Jesus quando este era vivo e mesmo assim deste recebeu o chamado (“Por que me persegues?...”).
Na Baixa Idade Média temos a Escolástica e, obviamente, sou obrigado a me referir a São Tomás de Aquino. Neste autor percebo um certo traço peculiar no que, pretensiosamente, denominarei de “a tradição materialista do pensamento filosófico” – como antítese à “tradição idealista do pensamento filosófico” (também uma pretensão minha). Concebo a primeira como vindo, em suma, de Aristóteles, São Tomás de Aquino, Locke etc., e chegando ao seu expoente máximo, Marx. A segunda, também em um resumo muito precário e esquemático, teria origem em Platão, Santo Agostinho, Calvino, Descartes, Kant, Hegel (sendo que este, só para confundir, em muito entusiasmou a Marx) etc. Como conciliar – esta é a “peculiaridade” – materialismo e fé religiosa? Tomás de Aquino conciliou, com sua concepção oposta a da predestinação. Para ele, e todos os outros escolásticos, a salvação da alma vem da combinação de duas coisas: ter  e ser um Bom Cristão. Este último aspecto significa praticar “boas obras” (caridade para com os mais pobres – segundo os ensinamentos de um determinado Cristo, isso depende de quem lê –, não praticar o lucro e sim o “preço justo” no comércio etc.); e quanto à fé, diferentemente do que pensam Agostinho e Calvino, é uma escolha do indivíduo e não uma dádiva de Deus.
Ambas as tendências expressavam o que se vivia nos contextos de onde eram originárias, e, dialeticamente, também influenciaram estes contextos. A reclusão feudal da Alta Idade Média não poderia fornecer outro ambiente filosófico do que o da contemplação quase que irrestrita ao mundo das ideias; já o intenso renascimento comercial urbano, advindo, como já disse mais acima, da crise do feudalismo que experimentava a Baixa Idade Média, colocou o homem europeu em contato com uma realidade, concreta, prenhe de vida social; e o pensamento intelectual, científico, artístico e teológico, não poderia ficar imune a isso. Aquino, neste contexto, percebeu que a Igreja tinha obrigações sociais (talvez não com este linguajar contemporâneo que uso – desculpem-me se sou anacrônico), e fez uma opção ética no seu entendimento sobre o que é religião, conciliando fé e razão, dando ao cristão o princípio da Vontade, da Ação etc. Entendo isso como um avanço no pensamento Cristão; que retroagiu, contudo, nos primeiros anos da Época Moderna com algumas das concepções protestantes. Para Lutero, somente a Fé salva – descartando as preocupações sociais das “boas obras”; e para Calvino, pior ainda, os homens são escolhidos por Deus para serem salvos ou não; retirando-lhes a Vontade, racional, e a Ação, ética. Calvino, de uma família de comerciantes franceses, diz que os sinais de que Deus nos escolheu para a Salvação são: a) se apresentamos fé (e ele inverte as coisas, pois não escolhemos ter fé, é Ela que nos escolhe) e b) se temos lucro; que por sinal, para ele, “é divino” (para Aquino é pecado). Os sinais da danação da alma, dentro desta lógica calvinista, se dão no oposto: pobreza e falta de fé.
Jorge Bergoglio fez uma homenagem a Francisco de Assis; homem que viveu no início da Baixa Idade Média e que rompeu com os poderes econômicos e políticos instituídos em sua época, optando pelos valores da Natureza, plantas, animais e o homem como parte disso tudo. Sua revolta, radical, era contra ao abandono destes valores; e no caso dos homens, a pobreza que os atingia, tanto da alma quanto do corpo. Não foi à toa que Francisco criou um ordem mendicante, os franciscanos. Tomás de Aquino não era franciscano, mas foi dominicano, outra ordem mendicante criado quase na mesma época por São Domingos. O Papa Francisco se disse a favor dos pobres; que bom. Mas isso não pode ser somente um discurso oficial e estratégico da Igreja; é necessário também que venha a agir concretamente contra a pobreza, escolhendo bem os exemplos que a própria História do Cristianismo pode lhe fornecer. Francisco de Assis e Tomás de Aquino, no mínimo, seriam um bom começo.

domingo, 10 de março de 2013

Uma Questão de Ponto de Vista


Do ponto de vista do atual pensamento liberal, econômico ou político, ou principalmente do “novo liberalismo” (o “antigo” seria aquele surgido no séc. XVIII com o Iluminismo), o legado de Hugo Chaves é ruim. Enfraqueceu as instituições democráticas e retirou das classes empreendedoras, em termos do capitalismo, sua proeminência política sobre as decisões de governo que envolviam, sobretudo, a destinação dos recursos do petróleo.
Há quem diga que estas instituições, na Venezuela dos últimos anos, já há muito se mostravam desgastadas e sem capacidade de resolver os problemas gerados pela insatisfação popular em relação à discrepância entre riqueza natural produzida e exportada e a situação daqueles que pisavam o território de onde saiam esta riqueza. Nesta noite (10/03/12), precisamente às 19:20h, na Globo News, ouvi um economista da Fundação FHC dizer que a herança chavista não será lembrada ou julgada, na História ou por Ela, como positiva; tendo em vista os seus erros cometidos em sua política econômica.
Se as decisões econômicas dos governos anteriores ao chavismo fossem corretas, talvez não existisse um Chaves. Eu sei, isso é especulação; contudo, não é especulação dizer, pelo menos (em se admitindo “erros”), que a natureza a e as intenções dos governos equivocados, antes e depois de Chaves, não são as mesmas. As falhas eram cometidas por e a favor de pequenos grupos (uns chamam “elites” e outros “classes dominantes”), que controlavam ou o governo ou, mesmo que indiretamente, as petrolíferas; mas ai tudo bem, são as regras de um mercado livre – livre de regras etc. Mas também tem a análise política além da análise social e econômica. Os erros de Chaves eram a favor, diretamente, dos mais pobres. Grandes e inequívocos serviços sociais em áreas de saúde e educação, dentre outros, que antes nunca existiram, foram capazes do colocar em movimento classes populares que pareciam, para o vergonhoso deleite dos mais beneficiados com os recurso petrolíferos, apáticas e conformadas com sua situação de miséria.

       Esta é a verdadeira “revolução bolivariana”. As forças populares partiram, radicalmente, contra as tradições viciadas de uma politica liberal a favor de uma minoria. Uma falsa democracia; oligárquica desde o séc. XIX, pelo menos. Incapaz de resistir a um “neocaudilho” de esquerda exatamente porque este, com suas ações, expôs o quanto cruel e ao mesmo tempo falho era o sistema opressor do capitalismo venezuelano. Eis aí a razão da paixão que a maioria do povo pobre da Venezuela nutre por Chaves. Mas ainda temos a opção, bastante razoável, de acharmos que os venezuelanos chavistas são burros, como insinuam alguns.